A estrada parecia eternidades obscuras. O asfalto se misturava com a noite e apenas a chuva se destacava na visão de Lúcia, vindo contra o vidro do carro. O pai dirigia, ela pensava.
Era sorte estarem numa região afastada dos centros, onde a confusão generalizada bloqueara todas as rotas. Ali, conseguiam, ainda, se locomover.
Júlio acelerava, Lúcia apertava o banco do carro com as mãos. Estavam viajando pela escuridão e somente maus presságios a dominavam. Tentava acalmar o coração acelerado, mas cada vez que fechava os olhos via o olhar vazado de Gabriel e voltava a seus ouvidos o grito desesperado da agonia que a morte da consciência provocava. O limpador de para-brisa soltou um guincho e ela abriu os olhos, fitando o pai. Ele ainda dirigia, inabalável, apesar de tudo.
-Você acordou. - Ele disse, mantendo os olhos na estrada. Tinha um tom de voz suave.
Pegara no sono... e o sonho era a lembrança.
Sem obter resposta, ele continuou falando.
-O rádio pegou por um trecho lá atrás. Estavam explicando. A epidemia está por toda a parte e estão tentando controlar.
-Será que era melhor a gente ter ficado em casa? – Ela perguntou, passando a mão pelo cinto que a prendia ao banco.
-Não. - O homem foi categórico.
Lúcia lembrou. Fora questão de horas desde o início da febre de Gabriel até o fluído cerebral vazar pelas suas narinas... A última vez em que o vira, ele estava com os dentes cravados na pata de um dos cavalos da fazenda, coberto de sangue do animal, enquanto sua presa relinchava e escoiceava. Não havia controle. Ninguém curaria seu irmão.
-Mas não há como saber se ficar em casa é seguro. Ninguém sabe como isso se alastrou. Se tivéssemos ficado... – A voz dela sumiu no meio do protesto.
-Eu sei, filha.
Logo depois que saíram de casa, toda a região escureceu. A energia fora cortada, ou caíra. Não havia sequer estrelas para iluminar o mundo: só os faróis da caminhonete.
Lúcia não sabia para onde estavam indo. Júlio não lhe dissera e não parecia saber.
Estavam rodando por horas, no entanto, e ela sabia que a gasolina ia acabar.
Precisariam parar. E como se fosse resultado do pressentimento, o painel do veículo anunciou a necessidade de abastecimento.
-Vamos parar no próximo posto. – Júlio declarou, como se estivessem em viagem de férias.
Lúcia sentiu gana de enfiar as unhas nele. Queria uma reação. Queria reagir.
Limitou-se a apertar, novamente, o estofamento do banco, enquanto seguiam por mais alguns quilômetros.
Pararam em um posto que deveria estar funcionando, mas aparentava abandono.
Com o motor ainda ligado, Júlio procurou a lanterna que sempre carregava no porta-luvas.
-Fica aqui. Vou ver se tem alguém.
A garota observou. Ele caminhou até a loja de conveniência e Lúcia perdeu a visão dele. Encolheu-se no banco. Um garoto doente vinha à mente, na fazenda, mordendo um cavalo. E se o pai também estivesse doente? E se ele, de repente, começasse a convulsionar? Ele estaria também coberto de líquidos estranhos e mostraria os dentes...
Tremia, pensando naquela possibilidade. Cruzou os braços e enterrou as unhas nos ombros, sentindo a pressão delas sobre a pele. A prova de que estava viva.
Não viu ao certo quando voltaram a rodar. Adormecera outra vez?
Sentiu um calafrio tomando todo o seu corpo e se contorceu no banco. Estava ficando muito frio por causa da chuva. Voltou-se para o banco de trás e pegou um casaco, enrolando-se nele.
Júlio continuava dirigindo. Sempre em frente, sempre calmo. No que pensava?
Estaria perdendo a consciência? E se começasse a se esquecer das coisas e virasse como... como... Perdeu-se no pensamento. Era o sono, dominando-a, e ela cedeu.
Entre cochilos, só via que ainda se moviam. O rosto ao seu lado era constante, sempre olhando para a estrada, nunca a fitando. A face, ela percebeu, de repente, tinha medo. Nela, havia lágrimas. De quem era aquele rosto? O nariz coçou, ela colocou a mão e sentiu uma coisa viscosa. Olhou para os dedos melecados e uma súbita compreensão surgiu. Queria dizer algo, mas, em seu esforço, só conseguiu soltar um grunhido alto, que fez o vulto ao seu lado virar-se para ela, antes de continuar dirigindo. Ouviu um som tranquilizador. Encolheu-se, porque tinha medo.
Sua cabeça latejava, como se estivesse se esvaziando, lentamente. Tentou conter os furos do nariz, mas isso só fez com que quase se afogasse. Engasgou e cuspiu catarro esbranquiçado.
Sentia o rosto coçando e usou as unhas para aliviar-se, mas a coceira só aumentava, a dor crescia, a pele ardia. Sua garganta libertava o desespero que a dominava. Por que aquelas sensações todas perturbavam-na? Seu estômago queimava de fome e sua cabeça se consumia de necessidade...
O sol se anunciava. O motor do carro morreu num rompante, quando a gasolina se acabou. Só então os olhos lacrimejantes de Júlio encararam a menina que se contorcia ao seu lado, soltando esgares ininteligíveis, arranhando o rosto melado.
-Que Deus me perdoe. – Sussurrou, enquanto o cano frio e metálico lhe entrava pela garganta.
Puxou o gatilho.