*Conto originalmente publicado na antologia "Sem mais, o amor", publicada pela Editora Andross em 2017. Conto vencedor do Prêmio Strix.
Se não fosse por uma chuva de verão, esta história de amor talvez não tivesse começado. Mas a chuva, torrencial, atacou Estela enquanto ela andava pela Rua das Andradas em direção a um compromisso e a obrigou a se refugiar numa das lojas mais próximas.
Correra tão rapidamente para a proteção, já molhada pelos grossos pingos d’água, que apenas depois de abrigada percebeu se tratar de uma livraria. E o melhor de tudo: não era qualquer livraria, mas um sebo. Nada poderia ser mais providencial para aguardar o temporal ir embora do que vasculhar volumes usados e descobrir seus segredos.
Fascinada pelos livros, os usados eram os que mais atiçavam o coração literário de Estela. Isso porque eles contavam duas histórias: aquela que o autor escreveu e a que o dono anterior do exemplar escrevera em forma de flores secas escondidas no miolo, cheiros, marcações e anotações. Em diversos volumes, já encontrara bilhetes, comprovantes, e até mesmo listas de supermercado perdidas. Divertia-se ao imaginar o significado daquelas coisas, ou porque tinham sido esquecidas a ponto de serem vendidas em meio a um livro. Era como se, naqueles pequenos pedaços, Estela os conhecesse.
As obras mais antigas, com capa de couro, eram suas preferidas. Retirou algumas das estantes, onde se amontoavam vários tomos de diferentes épocas, com lombadas que indicavam os mais diversos tipos de tratamento.
De repente, numa das pilhas que estavam apoiadas nos nichos em meio ao corredor, vislumbrou uma edição de seu livro preferido, O Silmarillion. Era a mesma capa da versão que tinha em casa e pegou a cópia com curiosidade. Checou a ficha catalográfica: mesma edição, mesma impressão.
-Que legal. – Murmurou para si mesma.
Enfiou o nariz no meio do livro, aspirando o aroma das páginas, que pareciam contagiadas pelo aroma das florestas dos elfos.
Não entendia porque alguém se desfaria dele... Talvez em meio ao conteúdo houvesse qualquer pista a respeito e ela decidiu imaginar-se como detetive, tentando descobrir quem tinha sido o dono daquele livro e porque ele tinha sido levado ao sebo.
Logo na primeira página após a capa, havia uma assinatura em caneta azul, que indicava o dono do livro como Miguel Augusto Fernandes. Na parte de cima da mesma folha, no entanto, havia um pequeno recado, em caneta preta, que dizia:
Querida Júlia,
Este livro é muito especial para mim, mas não tanto quanto você. Gostaria que você tomasse conta dele para mim e mais do que isso, lesse e se apaixonasse por essas histórias como eu...
Te amo, Miguel.
P.S.: Não esqueça de ler o capítulo XIX.
O breve trecho atiçou sua curiosidade. Então, o livro pertencia a Miguel e ele havia dado de presente. No entanto, parecia que Júlia não tinha cuidado do livro com tanto amor assim... Do contrário, ele não estaria num sebo. Isso era meio triste. Se aquele cara a achava uma pessoa especial o suficiente para confiar-lhe seu livro preferido, Júlia devia ser mesmo o grande amor da vida dele. Ficou com um pouco de raiva dela por ter descartado o livro, mesmo sem ter certeza do que tinha acontecido.
Por um instante, presa nesses dilemas, largou o livro de volta na pilha. No entanto, lembrou-se da indicação de capítulo e decidiu que não faria mal dar uma olhada, já que o livro estava ali, disponível ao público. Não houve surpresa, o capítulo indicado, como ela lembrava, chamava-se De Beren e Lúthien.
Na página branca ao lado do capítulo, havia outro texto na letra de Miguel. Era uma caligrafia agradável, inegavelmente masculina e ligeiramente inclinada, mas legível e linear. Mergulhou nela.
Querida Júlia,
O capítulo que você está prestes a ler é a mais linda história de amor em que consigo pensar. Sabe, ela foi inspirada na luta do autor desse livro para que pudesse ficar junto da mulher que ele amava. Esse texto foi uma espécie de homenagem ao amor dos dois e espero que seja também ao nosso. Como você vai perceber, também há uma diferença de idade entre os personagens, mas nada os impediu de ficarem juntos e eles lutaram contra todas as forças do mal para que isso acontecesse. Eu também lutarei por nós, sempre.
Espero que goste da história tanto quanto eu.
Seu coração vibrava quando terminou de ler. Aquele recado era fofo demais! Que tipo de insensível seria Júlia? Miguel era um homem apaixonado. Suas palavras, eternizadas em tinta preta nas páginas do seu livro favorito, indicavam a força de seus sentimentos. Uma pessoa assim, que escrevera aquelas palavras de carinho, não teria mudado seus sentimentos. Júlia era a culpada pelo descarte do livro.
Devia ter sido ela, também, a destruir a história de amor dos dois. Odiou-a.
Sentiu o coração despedaçado por Miguel. Podre Miguel. Havia dado a sua amada uma parte tão importante de si, seu livro mais amado, e tinha sido rejeitado. Ele, um rapaz de palavras tão doces...
Imaginava que não devia ser muito mais velho do que ela. Devia ter uns vinte e poucos anos. Tinha cabelo castanho, ondulado, e olhos castanhos também, porque na aparência era comum. Era na sua alma que estava a sua diferença em relação aos outros.
Sentia seu coração aquecido ao pensar nele. Ah, se aquele livro tivesse sido dado a ela e não a essa tal Júlia... Seria tudo tão diferente! Ela, Estela, estaria disposta a ser a Lúthien a fazer de Miguel o seu Beren. Com ele, enfrentaria batalhas de RPG e juntos criticariam todos os filmes que adaptavam sua obra literária preferida de forma tola.
Juntos, revisitariam os mundos de suas histórias preferidas, num piquenique no parque. Ele ficaria deitado em seu colo e leria as histórias com sua voz macia. Ela, em algum momento, dormiria sobre a toalha e ele ficaria observando-a. Quando acordasse, os olhos dele estariam fitando-a, apenas esperando seu despertar para um sorriso.
Não falariam, jamais, de Júlia. Não seria necessário, pois Estela o teria feito esquecer-se daquela que um dia rejeitara-o.
Seriam tão felizes, haveria tanto amor... Bastava que se encontrassem e então seriam felizes para sempre, unidos pelo livro favorito...
-Senhorita? – A voz do atendente do sebo, um velhinho muito simpático, perturbou seus devaneios.
-Ah? – Ela abriu os olhos. Nem percebera que os havia fechado. Olhou para baixo, para seus braços que abraçavam o livro com ardor contra o peito e sentiu-se um pouco envergonhada.
-A chuva já passou, a senhorita pediu pra avisar... – Ele parecia meio encabulado. – Quer levar o livro?
Estela olhou para o volume em seus braços, a promessa do amor de Miguel Augusto.
-Não, eu já tenho um exemplar dele... – Disse, desconcertada, largando o volume de volta na prateleira. – Mas obrigada.
Partiu para a rua molhada, ainda sentindo no corpo o amor de Miguel, em forma de um calor no peito, onde o livro ficara repousando. O amara, naqueles breves momentos de uma chuva de verão. Amara-o sem conhecê-lo, por suas palavras, e era o bastante. Talvez algum dia o encontrasse, quem sabe? Mas não tinha pressa, seu coração já estava pleno apenas com a lembrança embaçada das palavras de amor nunca ditas e dos beijos jamais trocados.